Não. Não se trata de ninguém importante.Apenas meu primeiro amor. Ela tinha entre 20 e 21 anos, eu, entre 16 e 17. Sua família imigrou da Espanha para o Brasil, fugindo da Guerra Civil e daquele assassino, facínora e genocida , Generalíssimo Francisco Franco, por la grácia de Diós, como gostava de ser chamado. Responsável pela morte de milhares de libertários, inclusive Federico Garcia Lorca, poeta maior.
Fixaram-se no meu bairro, Mooca, como tantos outros espanhóis que para aqui vieram morando numa casa enorme, mas, habitação coletiva, na rua Madre de Deus, Alto da Moóca, um pouco acima do Cine Aliança. Ele, o pai, era um grande músico. Um grande violonista de guitarra flamenca. Quando o conheci, já beirava os oitenta anos. Era alto, magro, cabelos brancos sempre revoltos e de um grande bom humor. Quando tocava, parecia que dormia sobre o instrumento, que ficava encostado com seu bojo junto ao seu peito, que era para ouvir melhor com os ouvidos e com o coração, parecia. Dedos finos e alongados, que se repetiram em sua filha mais nova, Rosa. Tinha um filho, que se chamava Pedro e outra filha mais velha, que agora me foge o nome. Tinha sido muito famoso em sua terra, onde era apelidado de “El Niño Socato”. Em Sevilha e região, é comum chamar-se os ídolos de Niño. Vide “Niño de Utrera” e outros. Quantas noites fiquei ouvindo aquele grande artista, segurando na mão de sua filha.
Naquele tempo, dançava-se muito. Não se tinha carro, não havia motéis, os hotéis não permitiam a entrada de casais, portanto a única maneira de se ter uma mulher nos braços e vice-versa, era dançando. Pois foi num baile que conheci Rosa. Era um baile de formatura que fui não sei convidado por quem e ela dançava só com um cara que parecia muito com o hoje conhecido ator Marcos Palmeira, só que com um cabelo que parecia abotoado atrás, cheio de “Gumex”, que se usava para fixar bem o cabelo, deixando no alto,um topetinho despenteado e atrás aquele cabelo cruzado. Não fui muito com a cara dele, mas, a dela foi na hora uma mistura química que nos atacou aos dois. Amor à primeira vista, se dizia.
Não sei quem dos amigos que estavam comigo, disse a ela onde costumávamos dançar aos domingos à tarde. Era sábado à noite, esqueci-me de dizer. Todos os domingos à tarde, dançávamos no GGPTB, um clube de futebol amador, do qual eu era diretor social, que fazia de tudo, inclusive varrer e encerar o salão, passar parafina, cuidar das carteirinhas dos sócios arrumar músicos para os bailes de fim de semana etc. O clube ficava na rua da Mooca, altura do número 2.300, quase em frente à rua dos Donatários. A matinê, como era chamada, ia das três da tarde, às sete da noite. O salão ficava no primeiro andar. Havia muitas escadas para se chegar a ele. Ficava na horizontal, onde havia muitas janelas, dois banheiros (um para eles e outro para elas) um pequeno escritório numa das pontas que era utilizado como secretaria. Naquele domingo à tarde choveu muito. De repente, salão quase vazio por causa da chuva, ouço passos subindo apressadamente as escadas. Vou olhar pela mureta e quem vejo? Ela, num vestido azul claro, rosto e cabelos molhados, vestido colado ao corpo que lhe acentuava ainda mais suas lindas formas, que ao me ver deu aquele lindo sorriso como quem tivesse achado um tesouro. Fui logo ao seu encontro e , quase sem falar nada, abracei-a e no seu ouvido disse :
– agora,não vou querer mais perder você de vista.
– …eu também, disse ela.
Dançamos a tarde toda. Rosto colado, cantávamos, um no ouvido do outro, todos os sucessos de Gregório Barrios, o ídolo de nosso tempo : …Final, de um sueño que fué triste realidad/quando despertamos/”Somos” dos seres que em uno que amando quedamos/Um algo se interpone/ para poder amarnos/no se no lo comprendo/pero es la realidad/me quieres y te quiero/me adoras y te adoro/pero apesar de todo/me deves de olvidar/,,, E por aí ia, nosso idílio, ao ritmo dos boleros do Gregório.Dançamos tanto tempo juntos, que já parecíamos um só . “Samba –quadradinho”, ”Miudinho”, “Gafieira “ e tudo mais. Ainda não haviam inventado o rock, mas, se já tivessem, não seria problema .
Não ficávamos nem um dia sem nos ver. À noite, dia de semana, íamos para o nosso lugarzinho de costume: sentar-nos na mureta da Maternidade da Mooca, que ficava num lugar bem escurinho de avenida Paes de Barros, próximo à casa dela. Lá, todas as noites experimentávamos os prazeres do sexo, livre e descontraídos , mas irresponsavelmente descontraídos. Até que um dia, e que dia, ela me disse que estava grávida.Vamos dar um jeito, disse-lhe eu. Minha avó, vai querer que a gente se case, seus pais também. E como vamos viver se com dezessete anos não tenho nem como me sustentar, imagine uma família. A solução partiu dela. Um fã do pai dela era médico e poderia dar um jeito. E deu. Dias depois, num hospital em que ele trabalhava e que ficava na Av. Angélica, eis-nos lá. Ela e eu, para cometer a bobagem maior, um aborto. Foi rápido,já no fim da tarde tudo estava resolvido. Ele chamou-me de lado e pegando no meu braço, levou-me até um pequeno laboratório do próprio hospital. E disse mostrando-me um grande frasco com éter, ou coisa parecida. Eis seu filho. Olhei meio que enojado,e disse : isso é meu filho? Parece um sapinho. Tinha pouco mais de um palmo e segundo ele, seria homem e agora estava ali num vidro de formol, éter, sei lá. Peguei Rosa pelo braço e fomos de volta para a Mooca.
Continuamos nos vendo, cada vez mais. Agora até na hora do almoço, ela passava lá em casa e conversava com minha avó Marianna. Rosa me havia dito que um tal de Joãozinho, empregado da farmácia do bairro, vivia dando em cima dela. Como eu estava precisando tomar umas injeções de “Biocalcino”, que ninguém é de ferro, fui até a farmácia e aproveitei para tirar satisfações com aquele projeto de gente.Era um baixinho que aplicava injeções à domicilio e atendia no balcão, sempre com um sorriso de plástico, muito próprio das pessoas simpáticas”.
Não sabia quanta maldade morava naquele animalzinho tão pequeno. Vítima de uma leve infecção, tive que me servir daquela farmácia.Tinha que tomar, segundo o médico, três injeções, pela ordem: a mais fraca, a intermediária e por fim a mais forte . Sabem o que fez o tal de Joãozinho que vivia dando em cima da minha Rosa ? Inverteu a ordem e foi logo me dando de cara a mais forte. Tive muita febre. Mais de 40 gráus. Até delirei. Minha avó chamou o médico, que me disse que poderia até ter morrido, não fosse socorrido à tempo. Rosa ficou ao meu lado o tempo todo.
Quando fiquei bom,fui atrás dele e cobri-o de porradas.Ele só dizia,foi sem querer,foi sem querer.Sumiu da Mooca.
Outro acidente médico me aguardava. Agora,eu já estava trabalhando na Vasp, na Rua Líbero Badaró. Um colega de trabalho, a quem contei sobre a tal infecção, me disse que tinha tudo para ser uma doença venérea. Mas como ? disse pra mim mesmo. Eu só tenho relações com a Rosa, será que peguei dela ? À noite conversamos seriamente. Ela chorou muito eu muito nervoso, parece até ameacei bater nela.
Foi aí que, imaturos, nos separamos de vez. Procurei o Dr. Modesro Pinotti, que tinha consultório na rua José Bonifácio, perto da Vasp, onde eu trabalhava. Ele me disse : menino, você não teve recentemente nenhuma doença venérea.O que você teve, foi um tipo de Herpes, que , com este remédinho, vai passar logo. Animado, fui logo procurar pela Rosa. Ela não morava mais lá. Havia se mudado não se sabia para onde. Passou-se um ano, mais ou menos e nunca mais a vi. Disseram-me que até tinha se casado, coisa que eu também estava prestes a fazer com uma também freqüentadora do mesmo baile, que, por ter engravidado, tive que casar, segundo a vontade de minha avó e da mãe dela, minha primeira mulher, que estava esperando uma filha minha.
Depois de casado, prestes a me mudar para o Rio de Janeiro, onde sabia ficaria por muito tempo, uma amiga comum me deu o endereço da Rosa, que havia sim se casado. Não sei bem onde era. Lá pelos lados da Água Rasa. Cheguei lá, uma cerquinha de ripas, um recuo enorme e lá no fundo uma casinha confortável. Abri o portãozinho, fui entrando terreno adentro e eis que surge na porta da cozinha, aquele mesmo sorriso que vi de rosto molhado na escada do salão de baile. Continuava linda e sem que eu dissesse nada, foi dizendo: Eu sabia que você viria. Eu estava te esperando. Ela me disse que havia se casado com o Julinho, que conheceu na infância, tinha três filhos. Perguntei dos seus pais, me disse que morreram, seu irmão era barbeiro na cidade e eu disse que tinha vindo apenas me despedir e que iria morar no Rio de Janeiro. Desejou-me boa sorte. O menino mais velho dela brincava com uma bola no meio do terreno.
Como é o nome dele ? – perguntei eu…
– Walter,disse-me ela. Nunca mais a vi.
Foi a mulher que mais amei, depois de Déa com quem casei e vivo há 43 anos.
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Walter Silva
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