Quando uma partida de futebol transcende a mera prática do esporte

Estava um sol de rachar. Era por volta das 15h10 quando desci do ônibus na avenida Radial Leste, principal via que liga a zona leste ao centro, num ponto no cruzamento com a rua do Hipódromo, na Mooca, bairro charmoso por sua história e orgulhoso pelo seu povo. É até chamado por alguns de “República da Mooca”. Era domingo, 15 de janeiro, depois de amargar dois anos na série A-2, era estréia do Juventus no Campeonato Paulista, já que a partida da primeira rodada contra o São Paulo fora adiada, em virtude do tricolor ter entrado de férias mais tarde por causa de sua conquista no Japão.

O adversário daquele dia de calor incrível era o São Bento. Atravessei a Radial e caminhei pela pacata rua do Hipódromo, de suas casas velhas e comércios fechados, até chegar à rua dos Trilhos. Entrei na rua Visconde de Laguna e avistei um maior movimento de pessoas. Virei à direita: estava na mitológica rua Javari, de tantas histórias e reverências. Endereço que guarda o simpático estádio Conde Rodolfo Crespi, casa dos juventinos.

Pisando meus chinelos na calçada daquela rua sentia o clima caseiro. “Espera só um pouquinho que eu vou ali em casa e já volto”, dizia um senhor de idade avançada, com a camisa de cor grená do Juventus. Era um lugar que as pessoas não andavam mais de um quilômetro até o estádio. Sua ligação com o time é, acima de tudo, por causa do bairro, assim como é para os times do interior que encarnam o nome da cidade e representam suas cores por todo o estado. Ali, no pequeno bairro de imigrantes, que um dia foi repleto de indústrias e operários, toda a história e satisfação daquele povo vem do seu bairro e de seu representante pequeno, o Juventus, que enfrenta (e vence) os irmãos mais poderosos do chamado trio-de-ferro. Acho que minha simpatia por esse clube deve-se ao fato de ser o único estádio a ter jogo na zona leste (a fazendinha do Corinthians não é utilizada em jogos de profissionais). Sinto satisfação nisso, afinal, eu moro no “lado leste” da cidade.

O clima familiar e de amizade é tão grande que o bilheteiro nem me pediu o RG para bater com a carteira de estudante da pós-graduação que eu lhe entregara. Disse que não precisava. Surpresa, pois no Morumbi, na semana seguinte, o rapaz de lá quase me xingou quando eu apenas entreguei a carteira. As pessoas passam de um lado para o outro, conversando, confraternizando. Todos se conhecem. Até por isso, me senti um pouco estranho ali. Havia anos não visitava o estádio. Ia muito quando a Copa São Paulo de Juniores realizava jogos ali. Meu primeiro jogo num estádio fora na rua Javari: São Paulo 7×0 Volta Redonda. Nem me lembro o ano, mas sei que eu era garoto e meu pai estava junto, numa das raras vezes em que ele foi comigo para o campo.

Tirei uma foto da fachada do estádio e resolvi procurar uma cerveja num posto de gasolina que ficava no fim da rua, nem 300 metros distante. Entrei na área de conveniência com um ar condicionado geladíssimo. Já estavam dois homens conversando e bebericando. Peguei uma long neck, sentei numa cadeira e esperei alguém do posto atender, já que num tinha caixa. Logo depois apareceu o frentista: “Vocês fiquem à vontade aí, porque a pessoa do caixa não veio hoje. Para pagar vocês falam comigo depois”. Após saciar minha sede naquele calor infernal, deixei a garrafa na mesa e fui pagar o frentista. Ele nem conferiu se eu tinha bebido apenas aquela cerveja, perguntou apenas o que eu tinha consumido e disse o valor. “Bom jogo”, desejou ao despedir-se. Respondi sua confiança e cortesia com um “bom trabalho” e voltei para o meu destino.

Entrei no estádio e fiquei na parte coberta. Nem posso chamar de numerada, pois não há bancos, apenas o cimento duro. Essa área estava repleta. O resto da arquibancada vazia. Alguns torcedores organizados do Juventus atrás de um dos gols e uma meia dúzia de fanáticos de Sorocaba com algumas faixas do clube azul. Já estava quase na hora do início da partida quando o Juventus entrou em campo, ovacionado pelos presentes. Resolvi apoiar também. Após alguma espera apareceu o São Bento, vaiado e xingado, como todo visitante, pela torcida da casa.

A partida começou e eu, com o radinho ligado no ouvido acompanhando o Palmeiras contra o Marília, me motivava mais com o jogo que via do que com o que ouvia. Desliguei o rádio e só o ligava para saber como estava o placar. Logo no começo da peleja na zona leste o volante Alê, ex-São Paulo, abriu o marcador com um belo gol, que ele nunca fez no tricolor, dada a sua fraca condição técnica. A rua Javari virou uma festa só. Gritos e aplausos misturaram-se aos cantos da torcida organizada do time. No segundo tempo, o Juventus perdeu vários gols, mas acabou ampliando com um tento de pênalti anotado pelo centroavante Wellington Paulista.

Mas aí a síndrome de vira-lata de Nélson Rodrigues passou a afligir o time da casa e sua torcida. Alguns começaram a reclamar do número de gols perdidos e do recuo excessivo, quando o São Bento diminui, com Genílson, através de um pênalti. A pressão prosseguia e a alegria se transformou em desespero. Eu mesmo já estava agoniado, não agüentava mais aquele calvário toda hora que a bola chegava na área juventina.

Até que, aos 48 minutos da etapa final (o juiz tinha dado 4 de acréscimo) uma bola na área do clube da capital e o gol de cabeça (feito por Jeci) tomado no fim transformara a festa em tristeza e amargura. “Eu não falei? Sabia que isso ia acontecer. É sempre assim”, lamentava um jovem torcedor. Mas o jogo ainda não havia acabado e mais uma peça estava para ser pregada na história do futebol. Aos 49 minutos aconteceu uma falta na intermediária de ataque do Juventus. A partida podia ter acabado ali, mas o árbitro esperou o desenrolar do lance. Resultado: bola na área do São Bento, bate e rebate, bola na trave, goleiro no chão e num dos rebotes o zagueiro da casa Max Sandro encarnou o papel de redentor e enfiou para as redes.

Aos cinqüenta minutos acontecia a glória suprema. Os atletas reservas invadiram o gramado, a torcida foi a loucura. Parecia final de campeonato. Ninguém acreditava no que acontecia naquele acanhado campo. Ali o árbitro encerrou a peleja e o que se viu foi uma pequena briga no campo entre os jogadores das duas equipes e a torcida berrando “Juventus, Juventus”, quando um senhor que estava trás de mim na arquibancada disse: “A justiça foi feita”.

Provavelmente não foi o pensamento do São Bento. Mas, naquele dia épico do futebol mais simples, meio varzeano, que não aparece na mídia, o Moleque Travesso realizava mais uma de suas proezas. E, na lógica de seu torcedor que via seu time voltar à primeira divisão, era mais que justo o Juventus vencer no seu bairro. Quase uma imposição, uma necessidade. E como nesse esporte a lógica fica a cargo da imprevisibilidade, e a justiça nem sempre se reflete no placar final, ao menos naquele momento aquela frase, mais um pedido, fazia sentido.

Rodrigo Herrero

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