Já se aproximavam os anos cinqüenta.

Vou pedir licença para desviar o assunto, e contar um caso que aconteceu comigo e dois amigos. Um deles era meu primo Tim, que falava “trigue”, invés de tigre.

Entre os sete e onze anos, eu chegava da escola, tirava o uniforme, composto de uma caça curta e camisa branca, ficava descalço e me mandava correndo para a rua. Quase sempre levava um pedaço de pão e um pouco de sal. Juntava-me a outros “capetinhas” e íamos para a barroca. Só não ia para a barroca, aos sábados e domingos. Nesses dias eu me transformava em engraxate,

Deixe-me explicar primeiro o que era barroca. A barroca era uma área muito grande de propriedade da Companhia de Terrenos Parque da Mooca. Essa área pegava a parte direita de quem sobe a Av Paes de Barros e ia até os Armazéns Gerais no Bairro do Ipiranga. Os armazéns ladeavam a Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, e quase sempre estavam envolvidos por incêndios criminosos. A barroca avançava também de um lado em direção à Vila Prudente, e terminava no lado oposto, exatamente na Várzea do Glicério, também conhecida por Ilha dos Sapos. Quatro quintos da área eram cobertos por uma rica vegetação e algumas correntes d’água. Um quinto estava tomado pelos campos de futebol dos times de varzeanos. Dali saíram craque como os irmãos Pinga da Portuguesa de Desportos, Oswaldinho do Juventus e do Palmeiras, Vitor do São Paulo, que se tornaria o mais implacável marcador de Pelé, o clássico e estilista Zinho da Lusa, Adhemar e Diógenes do Juventus e do São Paulo e Corinthians, Rodrigues do Palmeiras e da Seleção Brasileira, etc.

No meio da rica vegetação natural, encontravam-se com relativa facilidade; amoreiras , ameixeiras, goiabeiras, maracujazeiros, sementes de Maria-pretinha, riachos infestados de rãs e lambaris, cobras de várias espécies e tamanhos, tatus, preás, canários da terra, pintassilgos, bem-te-vis, sanhaços, sabiás uma e laranjeiras, rolinhas, beija-flores de várias cores, papas-capim, andorinhas com o dorso e asas azuis, cardeais, raras patativas, bigodinhos, bandos de pardais, curruíras do brejo, chorões, tesourinhas, bicos-de-lacre, piriquitinhos verdes, avinhados, azulões, tsius, tico-ticos, galinhas que haviam escapado de algum galinheiro e que chocavam na relva, gambás, que muitos confundiam com raposas, urubus atrás de carniça e até gaviões em busca de camundongos. Para pegarmos alguns desses pássaros usávamos de vários estratagemas. Os tsius e bico-de-lacre pagávamos com visgo que esfregávamos nos galhos próximos a sementeiras. Os tico-ticos pegávamos com arapucas, e os papa-capins e pintassilgos, com gaiolas com alçapões falsos. Costumávamos fazer um buraco no chão, de mais ou menos quarenta centímetros de cada lado, e ali deixávamos os pássaros aprisionados. Cobríamos os buracos com galhinhos secos que espetávamos nas beiradas. Lateralmente cavávamos um pequeno túnel, e por ali enfiávamos o braço, soltando o pássaro. Dentro do buraco colocávamos uma canequinha com água, alpiste e um pouco de quirera. Quando no final da tarde íamos apanhá-los, às vezes éramos surpreendidos por pequeninas cobras que entravam no buraco, não se sabe por onde. Encontrava-se também ali, uma espécie de amora jamais vista em outro lugar: a amora italiana. Diferentemente de outros tipos de amora, ela quando madura e ao ponto de ser colhida e comida, ficava amarela. Era tão gostosa que era muito difícil achar um pé virgem. Para camuflá-la, chegávamos ao ponto de cobri-las com outra vegetação. Havia também uma espécie de maracujá roxo extremamente delicioso. Era menor que uma bola de tênis, mas tinha tantas sementes dentro que pesava mais que os grande maracujás de casca amarela. Naquele lugar só não se encontrava sal para tempero, por isso eu e meus amigos tínhamos o hábito de levar um pedaço de pão e uma porção de sal. Não posso me esquecer também, das tajuranas, ou como queiram, içás. Costumávamos comer as “bundinhas” desses insetos. Para quem não sabe, içá é a fêmea alada da formiga cortadeira. Depois das chuvas, elas apareciam às dezenas. Ali ficávamos até anoitecer , e por incrível que possa parecer, tínhamos até sobremesas. De quando em quando, um caminhão da firma Chocolates Gardano descarregava e deixava no chão, centenas de barras de chocolates com falhas na embalagem. Era só escolher e comer. Também os fabricantes de cigarros costumavam descarregar pacotes de cigarros com defeitos. Lembro-me até de três marcas famosas. Aspásia, Fulgor e Macedônia.Eu “abasteci” meu pai vários anos com aqueles cigarros. Cheguei inclusive, a vendê-los picado nos bares e salões de sinuca. Não posso me esquecer ainda das laranjas. Na época da colheita, uma fabrica de sucos não me recordo o nome jogava caminhões e caminhões de laranjas levemente estragadas. Ficávamos horas e horas escolhendo as mais perfeitas. Também cheguei a vendê-las pelas ruas do bairro. Na verdade, apesar de pobre, eu nunca tive problemas com dinheiro. Eu sabia como ganhá-lo. Às vezes eu corria o bairro puxando uma carrocinha, e só voltava quando ela estava cheia de garrafas e latas vazias, que eu vendia no ferro velho do espanhol Bartolo. Bartolo era legal e sempre me pagava mais . Outras vezes auxiliava o seu Luiz, um negro muito educado que era dono de uma banca de jornais na Rua Fernando Falcão, vendendo a Gazeta e A Folha de porta em porta. Com os “trocados” que eu ganhava vendendo os jornais, eu comprava velhos Gibis (revistas de aventuras em quadrinhos) Meus heróis preferidos eram o Tocha Humana, o Homem submarino, o Capitão América e o Brucutu, montado em seu dinossauro Dino. Eu também gostava do detetive Dick Tracy e do vistoso topete de Ferdinando. Seu Luiz era comunista , quem não era na época?, E cuidava do clube Paz, que estava localizado na Rua do Oratório, perto do antigo cemitério que ficava na esquina da Rua da Mooca com a Juvenal Parada. Diziam que o local era mal- assombrado, mas eu passava por ele sem dar bola. O Clube Vasco da Gama transformou o antigo cemitério em seu campo de futebol. Quando era feito um bonito gol, os impressionáveis, ou seriam gozadores? Diziam que era obra dos espíritos. Perceberam por que? Deixemos os espíritos e voltemos ao Paz.Às sextas-feiras eu saia da escola e parava nesse clube para jogar pingue-pongue. Foi lá que aprendi a dar cortadas nas bolinhas. Quem joga pingue-pongue, sabe que estou falando. Continuemos com as brincadeiras.

Quando não estávamos envolvidos com as “peladas”, estávamos montando arapucas ou atirando com estilingue, e quando não estávamos fazendo nada disso, íamos dar mergulhos ou armar alguns covos na “prainha”, um córrego de água límpida e cristalina, muito concorrido. Na época de calor íamos à noite para essa “prainha” e ficávamos horas fisgando rãs. As cobras-d’água, com o dorso amarelo e costado verde e cinza eram nossas companheiras. Disputavam conosco palmo a palmo, essas presas valiosas. Ainda bem que elas não eram venenosas. Para vocês terem uma idéia como eram bons aqueles dias, nosso pais quando nos viam voltar cedo demais, achavam que estávamos doentes ou tinha acontecido algo de anormal.

Num dia de calor intenso fui à barroca nadar no Tchipum, uma lagoa funda e de água barrenta muito procurada por crianças e marmanjos . Como disse antes, estavam comigo o Tim, que era meu primo, e o Zé Calabrês. Não é preciso dizer que o Zé era descendente de italianos. Ficamos um longo tempo brincando naquela água barrenta, e quando saímos, as nossas roupas tinham desaparecido. Eram simples vestimentas. Cada um de nós usava somente uma calça curta e uma camisa com um bolsinho. Cuecas do tipo samba-canção só eram usadas por homens e meninos ricos.

Perto da lagoa, um pouco mais acima, começava o Bairro da Vila Prudente. Quase sempre encontrávamos alguns moleques daquele bairro e a coisa sempre terminava em briga. Levava vantagem quem estivesse em maior número. Até que era legal. Eu gostava de uma briguinha saudável. Aquilo nunca tinha acontecido antes. Apesar de sermos moleques de rua, tínhamos vergonha de que nos vissem pelados, ora ! Sabem como resolvemos o problema ? Arrancamos diversas folhas de mamona, amarramos todas elas com cipó bandeira e improvisamos uma proteção. Enlaçamos a cintura, demos um nó na frente e voltamos para casa ao escurecer. Paramos por uns momentos no alto do morro que circundava o campo do União Democráticos, e avistamos ao longe, centenas de vaga-lumes ajudando a Lua a iluminar as moitas e poças d’água.Dali era possível ouvir o coaxar dos sapos e das rãs. Já era noite, quando entramos na Rua Bixira. Foi aquela gozação ! Parado defronte ao bar do Zezinho, conhecido por suas freqüentes brigas por Bar do Faroeste, que ficava na esquina da Rua Madre de Deus, estava o Chupin, um grande gozador. Chupin, com sua fala mansa, tirava “sarro” de todo mundo. Quando nos viu, começou a gozação .

– Hei! Vocês aí peladões !

– De onde estão vindo ?

– Cadê o Tarzan e a Chita ?

– Cadê a Jane ? Ficou fazendo sopa ?

O Zé respondeu com inúmeros palavrões. Enquanto andávamos acelerados, continuamos ouvindo as gozações.

Depois de uns meses demos o troco numa garotada da turma do morro, como eram conhecidos os moradores daquela parte da Vila Prudente. Estávamos em seis, quando avistamos de longe, quatro garotos vindos pela encosta do morro em direção ao Tchipum. Um deles, que parecia ser o mais velho e mais forte, vinha movendo um carrinho de pedreiro cheio de verduras e frutas. Começamos a nos aproximar arrastando-nos pela erva rala que cercava o fosso. Quando nos viram, já era tarde. Por incrível que pareça, o mais forte era o mais covarde. Saiu da água rapidamente e pôs-se a correr na frente dos outros, desaparecendo num piscar de olhos. Os demais fizeram o mesmo. Eu convenci meus amigos para deixar as roupas e me apropriei do carrinho. Viemos vendendo pelo caminho as verduras e frutas, e dividimos o dinheiro em partes iguais. O carrinho ficou com o Chiquinho, que deu ao pai que era verdureiro por profissão. Seu Chico relutou inicialmente, mas acabou ficando com ele.

Texto extraído do livro “Mooca, berço dourado”, de autoria de Alcides Barroso Garcia, o Cidão