Ignácio de Loyola Brandão é um dos mais importantes escritores brasileiros não só da atualidade, mas de todos os tempos. Costumeiramente, era visto assistindo jogos do Juventus, sentado atrás de um dos gols do Estádio da Rua Javari. Em uma dessas ocasiões, ele nos contou que passara a nutrir simpatia pelo clube da Mooca principalmente pelo fato de que o seu uniforme era semelhante ao da Ferroviária de Araraquara, sua terra natal. Além disso, os fatos que lá ocorrem e os personagens que freqüentam a Rua Javari eram sempre uma fonte inspiração para suas crônicas, geralmente baseadas no dia a dia das cidades e das pessoas. Em abril de 1994, ou seja, justamente há dez anos atrás, Loyola escreveu uma crônica para o jornal “O Estado de São Paulo” que transcrevemos abaixo numa homenagem a esse grande escritor e ao Juventus que está completando 80 anos de existência.
“Faz vinte anos que venho à Rua Javari e nunca vi um centroavante marcar quatro gols num jogo só” A frase do torcedor juventino, no sotaque peculiar da Mooca, refletia a surpresa dos que, no sábado, foram ver juventus 5 x 1 São Caetano. Disputando a divisão A-II, o time está em terceiro lugar e luta para voltar ao grupo especial, para jogar contra os grandes. Há anos o “moleque travesso” mantém regularidade de colocação no campeonato. Nem cai, nem fica entre os primeiros. Ë famoso por roubar pontos dos grandes, engrossando jogos que parecem fáceis. É o time do Ferreirinha, uma das mais célebres eminências pardas da Federação de Futebol, uma raposa, conhecedor dos meandros em que devem se mover dirigentes para conseguir seus objetivos.
Ver jogo na Javari é seguir um cerimonial fechado. Não que o acesso seja proibido. A dificuldade, às vezes, está na bilheteria, como aconteceu no sábado. Um monte de gente com notas de CR$ 5 mil na mão, à espera de que chegasse o troco, ou torcedor com dinheiro trocado. Na verdade é quase uma reunião de família. Como se fosse um grupo de amigos reunidos para a macarronada dominical. Tudo é íntimo na Javari. O campo, dos menores de São Paulo, dá a sensação de pertencer a uma chácara. O gramado, atualmente, anda impecável, mas já foi bem ruim. As linhas laterais ficam a um metro do alambrado. Se um jogador vai bater o lateral, o torcedor pode agarra-lo pela camisa, com facilidade. O goleiro fica a dois metros daquela turma que se coloca atrás do alambrado.
Sou um deles. Fico atrás do gol do time da casa, porque no outro lado se posta a torcida, fiel, diminuta, feroz e barulhenta, a atazanar o goleiro. È preciso sangue frio para suportar. Há goleiros que se irritam e então a torcida pega no pé. Um dos poucos que vi levar na esportiva foi Valdir Peres, anos atrás. Ele morria de rir com o que lhe diziam. E pegava tudo, não deixava passar nada, gozava a turma depois de cada defesa difícil.
Em nenhum outro campo se tem tal visão de jogo. Sente-se. Entra na pele. Há os gritos dos jogadores, as pancadas, empurrões, o ruído seco do chute, a violência do impacto da bola na rede ou nos painéis da lata do alambrado. Tem também os cheiros dos linimentos usados nas massagens de aquecimento ou da grama pisada, violentada pelas travas das chuteiras. Na Rua Javari, futebol é em terceira dimensão. Mais que isso, é como se participássemos do jogo.
Quando se consegue descobrir em que dia o Juventus joga, é uma festa.
A imprensa abandonou a divisão A-II. Dão os resultados depois dos jogos. Mas é complicado saber quem joga e em que dia. Os juventinos têm a disposição toda à tabela, afixada num painel, embaixo das tribunas. Os outros só telefonando para o estádio.
Há anos vou a Javari. Há anos vejo os mesmos rostos. Nos conhecemos, nos cumprimentamos.
Há tipos pitorescos. Como aquele velho de chapéu bege que se posta atrás do gol, sabe o nome de todos os jogadores em campo e grita instruções o tempo inteiro, até ficar rouco. Seria um técnico frustrado? Se o bandeirinha marca alguma coisa contra o time de fora e alguém protesta, logo surgem defensores do bandeirinha. Não há brigas. Em 30 anos de Javari nunca presenciei brigas. Discute-se, xinga-se, mas socos nunca vi. Os maiores críticos do time da casa são seus próprios moradores, Se o Juventus vai mal, eles protestam, xingam técnico, diretoria, jogadores. E vão tomar cerveja no intervalo. Tem gente que nem presta atenção ao jogo, passa o tempo conversando. A tarde do sábado é para isso, encontrar amigos e conversar. Nas quartas feiras há gente de terno e gravata, pastas de executivos nas mãos. É uma alteração da rotina, dá-se uma escapada.
Na Javari não jogo à noite. E no inverno, como a luz do sol desaparece mais cedo, o jogo começa às 15 horas. Porque não há refletores. Não há alto-falantes, o que confere uma atmosfera peculiar: ouve-se o som ambiente. Há até pássaros que, no final da tarde, se aninham nas árvores do pátio de uma escola vizinha. Esta é uma São Paulo que se conserva, um futebol que não existe mais.
Ignácio de Loyola Brandão