Nessa época eu tinha lá meus 6 ou 7 anos de idade. Minha mamma tinha uma prima, a Sandra, que considerava como irmã. Foram criadas na mesma casa, numa vila da Rua Visconde de Parnaíba, no Brás. Tenho saudades dos almoços de domingo na casa da nonna Hilda. Macarronada com um denso e maravilhoso molho al sugo, frango assado muito crocante e um delicioso sorvete de coco feito em forminhas de gelo, com um palito de dentes espetado em cada cubo! Aquilo era para mim um banquete! Lembro-me muito bem de meu avô, um alfaiate de respeito que atendia a famosos e políticos, mas que, por isso mesmo, após o almoço, saía para sua alfaiataria em pleno domingo para acabar os trajes de seus afortunados clientes.
Pois bem, a prima Sandra era uma garota de mais ou menos 19 anos, sempre vestida na “crista da onda”, com suas calças tipo cigarrete, blusinha de banlon, sapatilhas e um penteado que transformava seus cabelos em algo parecido com um enorme pão doce. Mas era moda, fazer o que? Hoje, eu mesmo tenho que ver meus filhos ostentando enormes argolas em suas orelhas…
Voltando à prima Sandra, nunca me esquecerei que meu primeiro e último passeio de lambreta foi com ela e seu namoradinho. Eu, um garotinho magriço, fui adaptado entre o rapaz, que obviamente pilotava o bólido, e minha prima, sentada na garupa. Foi uma grande emoção. O rapaz era um piloto tresloucado, que dirigia como um “imbecille”, sem respeitar sinais de trânsito, semáforos, calçadas, pedestres nem coisa alguma. Saí do experimento com os cabelos arrepiados e as calças molhadas. Mas enfim, essa experiência deve ter contribuído pra a ojeriza que hoje eu trago aos veículos motorizados, com 2 rodas.
Passou-se algum tempo, creio que uns 4 anos, ouvi minha mãe comentar com meu pai:
-Antonio, minha prima Sandra está namorando firme, já faz uns bons meses, com seu chefe.
E meu pai:
-Namorando com o chefe dela? Hummm já entendi.
-Antonio, a coisa é séria. Eles estão até falando em casamento!
-Só espero que eles já não tenham feito uma encomenda dessas que mama, chora muito e molha as fraldas.
-“Tônio”, você só pensa nisso! Parece que o rapaz é super simpático. Tenho certeza que vocês vão se dar muito bem.
-Tá certo, então vamos marcar um jantar e você prepara como entrada aqueles maravilhosos mariscos que só você sabe fazer.
Cabe aqui dizer que, realmente, minha mamma sempre cozinhou muito bem. E essa mariscada que ela fazia (graças a Deus faz até hoje) era um verdadeiro manjar. Todos que a experimentavam acabavam por empanzinar-se até não mais poder. Era algo de lambuzar-se, mas com muita dignidade!
O tal jantar foi marcado pra sexta-feira e meu pai, que tinha alguns clientes no litoral, encarregou-se de descer para a Baixada Santista na quinta-feira e trazer algo como uns 5 kg de mariscos graúdos.
Sexta-feira, quando voltei do colégio (aliás do Grupo Escolar Oswaldo Cruz, na Rua da Mooca), ao entrar em casa já senti o maravilhoso aroma da tal mariscada. Um belo perfume de mar, misturado a tomates, cebola, alho, sal, limão e azeite extra virgem! Só aquele cheirinho já me enchia a boca d’água. Bem lá pelas 6 da tarde, a mamma botou a mim e a mio fratello, o Dopinho, debaixo do chuveiro. Ela queria que estivéssemos prontos, banhados e penteados antes que o casal chegasse.
Agora cabe falar um pouquinho de meu irmão, o Dopo! Nunca imaginei que aquele garoto encapetado acabaria se tornando o profissional renomado que é hoje. Quem conhece essa figura dócil, calma e tranqüila de hoje, não consegue imaginar o pequeno terrorista que ele foi na infância! O guri estava sempre ligado no 220 V. Todo santo dia minha mãe enfrentava um rol de reclamações da vizinhança relacionadas sempre às proezas do Dopinho. Janelas e telhas quebradas, gatos escaldados em água fervente, vizinhas idosas sendo xingadas pelos mais imaginativos adjetivos, enfim, era uma verdadeira ladainha.
E lá estávamos os dois, de banho tomado, com Brill Cream nos cabelos, ouvindo uma verdadeiro sermão da mamma a respeito de como deveríamos nos comportar frente ao novo namorado da Sandra. Dopinho ouvia a tudo com uma cara da santo que não dá pra descrever.
20:00 hs em ponto, toca a campainha de nossa casa (morávamos na Rua São Rafael) e adentram nossa sala Sandra e seu pretendente, que por coincidência, assim como mio babbo, também se chamava Antonio, Antonio Bastos. Meu pai e o Bastos, logo de cara, deram-se muito bem. Aliás, havia até uma certa semelhança física entre eles. Após as apresentações de praxe, minha mamma encaminhou tutti quanti para a mesa da cozinha, onde nos aguardavam os maravilhosos mariscos. Aos adultos foi servido um bello Chanti, e pros “miúdos”, eu e meu irmão, vinho com água e açúcar. Como em todo encontro desse tipo, falou-se um pouquinho de futebol, as mulheres comentaram sobre a roupa da Hebe no último domingo, e o papo não engrenava. De repente, invade o ar um cheiro horroroso! Putrefato, eu diria. Todos na mesa perceberam, mas ninguém falou nada. Cada um olhava para o outro com um rabo de olho, e todos se puseram a disfarçar degustando os mariscos enquanto o odor se dissipava. Dopinho estava ali, com a maior cara de santo, entretido em arrancar seus mariscos das casquinhas.
Eis que, novamente, o ar é tomado por aquele cheiro horrível. Dessa vez a coisa estava pior. Eu chegava a sentir até um certo ardume em minhas narinas. Os adultos emudeceram e um silêncio sepulcral tomou conta daquela cozinha. Nisso, o Bastos, pra tentar “quebrar o gelo”, pega uma casquinha de marisco, com um molusco dentro, mostra pra mim e pergunta:
– Luizinho, o que é que isso parece?
Pego de surpresa, balbuciei:
– Uma pedrinha.
Ainda com a intenção de aliviar a tensão, Bastos vira-se pra prima Sandra e diz:
– Benzinho, me diz o que parece??
E ela:
-Ah, amore, não sei…. parece um casulo de bicho da seda!
E Bastos resolveu continuar sua enquete junto à pessoa menos adequada para tal:
– E você Dopinho, me diz com o que esse bichinho se parece?
Meu irmãozinho ajoelhou-se na cadeira, apoiou as mãozinhas sobre a mesa e começou a olhar atentamente o marisco. Arrancou o bichinho da casca e examinou todos os ângulos possíveis. A essa altura, meus pais já estavam posicionados estrategicamente atrás de mio fratello, preocupados com a resposta do garoto. De repente, com a maior inocência que uma criança pode ter, Dopinho esboçou um:
– Parece c…
Minha mãe tapou de imediato a boca do guri com sua mão. Dopinho começou a chorar e Bastos interpôs-se entre os dois:
– Não faça isso, Dona Magda, deixe o garoto se expressar.
Meio a contra-gosto, minha mãe liberou a boca do Dopo e disse:
-Tá bem, filhinho, fala pro tio o que você acha…mas não diga nome feio, certo?
-Tá bom mamma. Esse bicho se parece com o buraquinho que eu uso pra fazer aqueles puns fedidos que vocês sentiram!
E retirou-se da mesa.