Todo descendente de italianos aprecia uma boa mesa. O alimento, para os “oriundi” tem até um aspecto religioso. Me lembro, por exemplo, que quando eu não queria comer a ponta mais endurecida de um pãozinho, minha nonna me fazia pedir desculpas a Jesus e beijar aquele “toco” de farinha assada, antes de depositá-lo no lixo. Mas, na realidade, somos mesmo é apaixonados pela arte da culinária! Eu particularmente considero mágica o que alquimistas do fogão conseguem fazer partindo de ingredientes simples como, por exemplo, transformar carne moída, pão amanhecido e temperos em deliciosas polpetas, que aqui na nossa República da Mooca são conhecidas como “porpetas”. E, em se falando de porpetas, tenho que citar uma pessoa: mio zio Domenico. Eu poderia dizer que ele é viciado nessas pelotinhas de carne. Come porpetas com arroz, com “pasta”, com feijão branco, com favas, com polenta, com pão e, principalmente, fritinhas acompanhando cervejas muito geladas.
Pois bem, as melhores porpetas da República da Mooca eram perpetradas pela queridíssima nonna Carmella, uma santa “signora” que veio para nosso bairro juntamente com seus pais, em 1912 quando tinha seus 5 anos, direto da cidade de “Napoli”, na velha e querida Itália. Não sei direito qual era o segredo da nonna, mas nunca comi uma porpetinha como aquelas que ela preparava.
Como eu já disse, zio Domenico era fã de carteirinha dessas iguarias. Vivia arrumando pretexto para visitar nonna Carmella, com a única intenção de devorar várias delas. Certa vez, chegou para a velha senhora com a seguinte história:
-Nonna, a signora num imagina quem quer experimentar suas porpetinhas. O Bispo Almário Bernardetti!
Nonna Carmela era uma senhora católica beatíssima, dessas que acordam uma hora antes para fazer suas orações diárias, freqüentadora da missa das sete e que, após a morte de seu marido, tornou-se senhora de um único homem: Jesus Cristo. Pois, imaginem a honra que seria para ela, receber em sua humilde casa, na rua Guaratinguetá, o Bispo da região?
É óbvio que tudo não passava de uma armação de zio Domenico. Bispo coisa alguma. O ilustre clérigo seria interpretado por Jair Fumaça, um franzino e pardo rapaz, nascido e criado no Rio de Janeiro, mecânico de automóveis por profissão, e um verdadeiro azougue jogando pelo Parque da Mooca no Desafio ao Galo.
Uma das qualidades de Domenico era sua popularidade. Meu tio transitava em qualquer esfera com uma naturalidade de fazer inveja. Era amigo de jornaleiros (nunca comprou um jornal na vida), donos de botecos, donos de pizzarias, políticos e…do sacristão da igreja. E não é que ele conseguiu arranjar um traje que caiu como uma luva? Após pequenas adaptações, como por exemplo um pedaço de cortina escarlate cortado grosseiramente para se passar por uma estola, parecia mesmo ser a batina de um bispo. Com um tanto de talco nos cabelos e uma câmera de bola de futebol cortada para se passar por um barrete, o bispo estava pronto. Domenico havia marcado a visita para as 4 da tarde de domingo, pois nesse dia nosso glorioso Juventus estaria disputando o primeiro lugar da segunda divisão do Paulistão, com transmissão ao vivo pela Record.
Por volta de 15:30, Carmellina começou fritar as pelotinhas. O aroma se espalhava pela rua. Quando Domenico e Jair chegaram, já havia bem umas 3 dúzias de porpetas muito bem fritinhas. Bateram palmas à porta e a querida nonna veio recebê-los esbaforida, trajando seu melhor avental. Ao ver o suposto bispo, emudeceu. Sem poder pronunciar uma palavra, curvou-se e beijou sua mâo. Para sua surpresa, a mão do clérigo tinha um “aroma” esquisito..
– Ma, signore bispo, perche sua mano astá cherando gasolina?
E o Fumaça, com um arrastado sotaque das areias de Copacabana:
– Sabe o que é, coroa, andei dando uns trato na pintura das “estáutas” da igreja, e limpei minhas “mão” com gasosa!
Nonna Carmella chama zio Domenico de lado e diz:
– Domenico, má che sutaque mais isquésito .
E ele:
– Calma, nonna, é que antes de virar bispo, Dom Almário trabalhou durante muito tempo como padre no Rio de Janeiro.
– Va via, iammo mangiare!!!
Dito isso, nonna Carmela volta à cozinha para concluir o preparo das porpetinhas. Enquanto isso, Domenico liga a TV e vai à geladeira buscar uma Antárctica geladinha, dizendo:
– Signori bispo, aceita una birra?
E o clérigo:
– Todassssssss…
Nona Carmela , já meio desconfiada, grita da cozinha:
– Don Almário, venha experimentá una porpeta fritinha na hora!
Muito a contra gosto, Jair Fumaça vai até a cozinha (ele estava bem ao lado da Antarctica geladíssima). Nonna Carmela espeta uma porpeta com um garfo e entrega pra ele. O rapaz sente seus dedos queimando e instintivamente, pra se livrar da “pelota em brasa”, enfia tudo na boca de uma vez. Na primeira mordida, aquele singelo manjar transformou-se num verdadeiro cometa incandescente. Parecia que o falso bispo tinha um bocado de lava quente na boca. Nosso amigo começou a pular feito saci. O talco em seus cabelos formou uma verdadeira nuvem, fazendo com que ele espirrasse como louco. Num desses espasmos, o barrete de câmara de futebol voa de sua cabeça direto para a frigideira.
Quando a borracha começa derreter, nonna Carmella grita:
– Ma, chi é questo allora?
E Domenico rapidamente diz:
– Até a Igreja tem que se modernizar. Agora os barretes são feitos de material biodegradável…
– Ma che cosa de genti mundanna… Isso num’né cosa di Christo. I qüela nuvem de poeira branca qui saiu da cabeça dele?
– Nada não, nonna, foi uma nuvem de angellini que desceu do céu para abençoar suas porpetas!
– Salve Dio mio… Io non mereço tanto!
O clima voltava ao normal e Domenico já salivando disse:
– Primo mangiare, dopo parlare!
Estavam retornando todos para a sala quando minha prima Gioconda entra pela porta da frente. Pode-se dizer que ela era uma garota “cheia de predicados”. Foi abençoada por Deus no quesito boa forma. E nessa tarde Gioconda havia caprichado. Vestia uma minissaia cor-de rosa que deixava à mostra suas pernas bem torneadas e, para coroar aquela escultura, um “top” branco semi transparente.
O “bispo” Jair vinha andando meio absorto, ainda convalescendo da queimadura na boca, quando de repente dá de cara com aquele monumento. Gioconda, por sua vez, ajoelha-se e pede a benção do padre. No entanto, ao fazer isso, um anel que usava se enrosca na batina, puxando-a para baixo. Zio Domenico corre em direção ao falso bispo para tentar evitar uma desgraça maior e, numa manobra estabanada, tentando preservar os trajes do clérigo, acabou arrancando a batina inteira. E, para completar a cena dantesca com chave de ouro, Jair estava peladão. Uma coisa horrorosa aquele mulato magrelo, quase sem pelos, nu e de meias e sapatos pretos.
Nonna Carmella gritou apavorada:
– Santa Madre, il padre é “nudo”! Disgraciatto! Farabutto!
Zio Doménico, antes de se escangalhar de tanto rir diz:
– Ma, bello, o que é que você tem na cabeça? Ma nem um “shorts” ‘ce botou meu?
E o Fumaça:
– Po, “merr…mão”, eu tava no maior abafo com esse vestidão preto e resolvi ficar à vontade.
Enquanto Gioconda olhava estarrecida para aquele sujeito horroroso e pelado, nonna Carmela decidiu acabar com a festa. Com uma pontaria tão certeira como jamais eu vira, de fazer inveja ao saudoso Oberdã Catani, ela começou a atirar as porpetas contra o “disgraciatto” do Fumaça, sem errar uma única. O pobre coitado saiu correndo pela Rua Guaratinguetá, pelado, trajando apenas meias e sapatos, com porpetas voando contra sua cabeça, numa velocidade tal que, em questão de segundos, já alcançava a Rua da Mooca. Desde esse dia, ele desistiu da mecânica e tornou-se atleta velocista no Clube Atlético Juventus! Ganhou até uma São Silvestre, acreditem!
Se você ficou curioso para provar as porpetas, aí vai a receita:
1 kg de carne moída, de preferência carne magra
3 pãezinhos amanhecidos, picados grosseiramente (se você usar pão italiano, vai ficar muito melhor)
Uma gema de ovo pra dar liga
2 dentes de alho amassados
Uma cebola pequena picadinha
Umas 12 azeitonas verdes descaroçadas e picadas
Cheiro verde também muito bem picado
3 pires de chá, cheios de um bom queijo parmesão, peccorino ou mesmo provolone ralado
Sal a gosto (não use muito sal pois o queijo já é salgado)
Como fazer:
Em uma vasilha, deixe o pão de molho em água, por mais ou menos meia hora.
Retire o pão, jogue a água fora, esprema muito bem e devolva para a vasilha juntamente com a carne moída e a gema.
Acrescente os outros temperos, misturando tudo vigososamente como se fosse massa de pão.
Cubra a vasilha e coloque na geladeira por mais ou menos uma hora.
Retire, faça pequenas pelotinhas (2 a 3 cm de diâmetro) enroladas nas palmas das mãos e frite até dourar em uma frigideira funda, com bastante óleo quente.
Deverão ficar deliciosas, mas garanto que não chegarão aos pés daquelas feitas pela nonna Carmella.
Luiz Antonio Caropreso