Talvez alguém encontre algumas incorreções ao ler este texto, mas isso não faz mal, porque ele não é uma pesquisa histórica, é apenas uma viagem às minhas lembranças de infância, é só um passeio sem compromisso pelas coisas que vivi e pelos casos que os mais velhos me contavam. E como o tempo sempre distorce um pouco as coisas que temos guardadas no baú da memória, por favor, sejam tolerantes.

Wanderley Duck (*)


Nascer na Mooca, na época em que eu lá nasci, era um privilégio discutível, mas o que não dava para discutir era que todo moquense tinha um orgulho danado de ser cria daquele bairro.

O motivo desse orgulho eu não sei ao certo, talvez fosse por causa da importância do lugar na história da cidade, ou talvez por conta do seu pioneirismo em relação as novidades que vinham de fora, realmente não sei o motivo, a única coisa que sei com certeza é que, do sério ao inconseqüente, do trágico ao divertido, era ali que quase tudo acontecia.

Desde antes dos tempos da chegada da folclórica e festeira italianada que atravessou o Atlântico per fare la America, até os meados da era da industrialização do país, que começou verdadeiramente naquela região do Brás, Mooca, Vila Prudente e Ipiranga, graças a ferrovia que atravessava os quatro bairros, foi naquele pedaço da cidade que boa parte da história do Brasil foi escrita.

Temos que lembrar também dos muitos movimentos políticos e sindicais que tiveram o seu início por lá.

Além disso tudo, não podemos deixar de mencionar que as novidades dos já mais recentes anos 50 e 60, antes do que em qualquer outro lugar, se instalavam primeiro por ali, para só depois se espalhar pelo restante do país.

O lado divertido desse pioneirismo, entre muitas outras bobagens, foram coisas como a Mooca ter tido a primazia do primeiro lava-rápido do Brasil, da primeira lanchonete a copiar os americanos que a gente via no cinema e fazer hambúrguer, do primeiro drive in, da primeira quadra de tênis de aluguel e até quando o tobogã virou uma moda efêmera, foi lá que o primeiro se instalou.

Quem anda hoje por aquelas ruas, vê poucos sinais das indústrias que fizeram São Paulo acontecer depois da era do café e também não vê quase mais ninguém com aquele jeitão de “orra meu”, que era a expressão de espanto mais típica do típico moquense.

Imagino que todos conheçam aquele verso que diz que “o novo vem e o velho tem que passar”, sem contar que a especulação imobiliária também não perdoa, mas infelizmente muitas vezes esse progresso, essa vinda do novo, faz vítimas preciosas, como foi o caso do Hipódromo da Mooca.

Quando ele foi construído, aquela parte de São Paulo ainda pertencia a então Freguesia do Brás e era nele que aconteciam as corridas de cavalo do Jóquei Clube. Só muitos anos depois é que o Jóquei se mudou para o seu novo Hipódromo de Cidade Jardim, lá pras bandas do Rio Pinheiros. Naquele tempo pioneiro, era nesse da Mooca o único lugar da cidade aonde haviam corridas de cavalos propriamente ditas, porque no trote da Vila Guilherme, na zona norte, o que tinha eram aquelas corridas com cavalos puxando pequenas charretes.

Os freqüentadores do setor destinado aos sócios eram a elite da época, vinham com seus carrões e, nas ocasiões solenes, vestiam fraque e cartola. Muitos chegavam acompanhados de suas senhoras, todas trajadas com o melhor da última moda européia, com direito a aqueles chapéus chamativos e tudo o mais que tentasse fazer lembrar o charme dos derbys da Inglaterra.

Como se tratavam das pessoas mais influentes da sociedade, não é difícil concluir que, envolvidos por aquelas cartolas e por aqueles chamativos chapéus femininos, muitos negócios importantes para a vida de toda a população foram fechados naqueles saraus eqüestres. Além desses negócios, acordos fundamentais para a economia e para a política nacional, foram alinhavados no setor social daquele hipódromo.

Claro que o povão também podia entrar, mas, como não eram sócios, ficavam em uma área chamada de populares… e era povão que não acabava mais lá nas populares.

Não sei se por falta de opções de lazer na época, ou se por gostarem mesmo de fazer uma fezinha nos cavalos, o fato é que vinha gente da cidade inteira para as corridas. Vinham tantas pessoas, que nos dias de grande prêmio os moradores do bairro nem podiam pegar o bonde de tão lotado que ficava, ia gente, literalmente, até no teto.

Para fugir dos bondes lotados, alguns turfistas acabavam improvisando e pegavam carona nos vagões de carga de uma pequena ferrovia que hoje não existe mais, uma espécie de trenzinho que havia por lá.

Essa pequena ferrovia saia das cercanias da Estação do Brás, o começo dela era perto de onde hoje é o Memorial do Imigrante, e servia para levar materiais de arruamento e pavimentação a um depósito da Prefeitura, que ficava lá para os lados da Rua Taquari.

Segundo me contavam os mais velhos da família da minha mãe, vovozinhos que quando moços viveram de uma pequena chácara que tiveram no final da Rua Javari, na época em que ainda não havia o bonde número 11, o Bresser, esse trenzinho também servia para os chacareiros da região levarem as suas verduras para o Mercado Municipal.

Como ele não tinha vagões de passageiros, o jeito era ir sentado no chão dos vagões de carga mesmo, pequenas gôndolas sem cobertura, do mesmo jeito que faziam as pessoas que iam para as corridas.

Para os chacareiros era uma viagem complicada, porque o trenzinho só os levava até um determinado ponto e de lá eles tinham que andar bastante com as caixas de verduras em carrinhos de mão, até chegarem aonde passava o bonde que finalmente os conduzia até o Mercado. Esse bonde era conhecido como “cara dura”, era mais barato e servia não apenas aos chacareiros da então distante zona leste, mas também aos operários mais simples que moravam naquele lado da cidade.

Voltando a falar das corridas, o turfe acabou penetrando tanto na alma dos moquenses que, mesmo depois que se mudou para a Cidade Jardim, o Jóquei Clube manteve por lá a sua agência de apostas, que aliás continua no mesmo lugar até os dias de hoje, na Rua Orville Derby, travessa da Rua da Mooca. Nos anos 80 tiveram que trocar de prédio e foram para um mais novo do outro lado da calçada, mas nunca saíram daquela rua.

Com o tempo, alguns descendentes daqueles italianos que realmente conseguiram “fazer a América” e progrediram na vida, deixaram o simples gosto pelas apostas e acabaram virando proprietários e criadores de cavalos, haja vista alguns excelentes plantéis e também alguns renomados haras da atualidade que pertencem a pessoas das novas gerações daquelas antigas famílias, gente nascida e criada no bairro.

Se a história tivesse se limitado apenas ao que lhes contei até agora, um hipódromo pioneiro com o esperado acontecendo nele, ou seja, um monte de cavalos correndo, uma elite fazendo a sua vida social e muita gente indo apostar, talvez o lugar realmente não merecesse ser preservado. Só que a coisa não parou por aí, porque um dia os automobilistas da época perceberam que aquela raia poderia servir também para corridas de automóveis nos horários em que estivesse ociosa e assim acabaram transformando aquele lugar no primeiro autódromo do Brasil.

Foi ali que, em 1902, começaram as primeiras corridas de automóveis do país, eram somente três carros que competiam, mas tudo bem, porque a São Paulo daquela época tinha no máximo só uma dúzia de automóveis mesmo e então três corredores foi um número bastante significativo.

Apenas nos anos seguintes é que começaram algumas provas de rua, como a São Paulo a Santos, que na verdade foi só de São Bernardo do Campo até Cubatão, culminando tempos depois com a Corrida do Parque Antarctica, em 1908, quando foi estabelecido o chamado Circuito de Itapecerica, considerado o primeiro circuito oficial do país.

Mas se carro pode, avião também pode e aí dá até para imaginarmos que foi pensando assim que o pioneiro Edu Chaves colocou aquele hipódromo agora na história da aviação, quando decidiu terminar seu vôo histórico de Santos a São Paulo pousando lá.

Na verdade não foi bem isso, nem passava pela cabeça dele a idéia de aterrissar ali, mas aconteceu que ele teve uma dificuldade de navegação e, no sufoco da escuridão da noite chegando, foi o lugar mais conveniente que ele encontrou. O francês Roland Garros o seguia em um outro avião e pousou logo depois. Não tinha uma alma, ninguém sabia que eles iam pousar lá, nem eles mesmo, e então, como já estava anoitecendo, os dois pularam o muro e foram procurar um transporte para voltar para casa.

O detalhe é que eles pularam aquele muro com uma carta no bolso, um envelope que iam entregar para uma pessoa chamada Gabriel Corbisier, era uma correspondência da firma Antunes dos Santos & Cia para ele, ou seja, foi primeiro vôo de correio aéreo da América do Sul, com direito a pulada de muro e tudo o mais.

De vez em quando aconteciam algumas festas lá no hipódromo, eles emprestavam para agremiações, partidos políticos e até mesmo para empresas que quisessem usar o lugar para suas comemorações.

O meu pai trabalhava na CMTC e uma vez foi lá que fizeram a festa de fim de ano para os filhos dos funcionários. Eu ganhei um trenzinho de plástico muito parecido com este desta foto.

A meia embalagem de papelão era idêntica, só que tinha uns dois ou três vagões a mais e representava um circo viajando, com vagões jaula com alguns animaizinhos dentro, alojamento com chaminé torta e outras coisas bem próprias de um trem de circo.

Claro que não durou muito tempo nas minhas mãos de molequinho destruidor, mas nunca me esqueci daquele trenzinho que ganhei no hipódromo.

Também foi por conta dessa generosidade da diretoria do Jóquei Clube em ceder o local, que integralistas, anarquistas e comunistas muitas vezes lotaram as arquibancadas com suas bandeiras e estandartes e, não raro, chegaram às vias de fato com opositores, ou mesmo com a polícia, que ia lá para impedir alguma manifestação. Eu me lembro de uma dessas pancadarias na época do Getúlio, eu era muito pequeno, mas lembro da correria como se fosse hoje.

Aliás, conta a lenda da Mooca, que uma das últimas peripécias do Plínio Salgado e dos poucos integralistas que sobraram ao lado dele quando o Brasil se uniu aos Aliados, foi fugir do hipódromo e correr a Rua dos Trilhos inteira com um monte de gente atrás querendo bater neles. Só escaparam porque entraram em uma casa que nem sabiam de quem era na Rua Itajaí, era a casa dos Tortorelli, eu estudei com as netas, e aí a Dona Catarina, uma oridundi típica, saiu com uma vassoura na mão e não deixou ninguém entrar para pegar o Plínio e seus galinhas verdes. Na Mooca o respeito as mammas era uma coisa muito séria, principalmente se elas estivessem com uma vassoura na mão.

Como citei o Getúlio, vale lembrar que ele também fez as suas presepadas lá no hipódromo, mas lembrar só um pouquinho, porque foi coisa triste. A temida polícia política dele usou aquelas arquibancadas para a concentração de presos, enquanto esperavam para serem levados ao presídio que eles tinham lá na Celso Garcia. Diziam que lá na Celso Garcia a coisa era feia, tortura, gente que sumia…

Falando em tempos ruins da nossa história, em algumas das revoluções em que São Paulo se envolveu o hipódromo também acabou sendo atingido. Nem tanto por ter servido só umas poucas vezes para fins militares, mas sim pelo fato dele ficar perto de muitas fábricas importantes da cidade, como a fábrica do Crespi, e a imprecisa artilharia da época ter errado as fábricas e acertado nele.

Mas, voltando aos aviões, muito tempo depois do Edu Chaves e do Roland Garros terem pulado o muro, alguém pediu permissão para usar o lugar como ponto de partida para vôos panorâmicos e assim, quando nem os cavalos e nem os automóveis estavam correndo, a aviação voltou novamente a operar por lá.

Para completar esse envolvimento com a aviação, agora em uma escala muito maior, alguns anos depois o hipódromo acabou virando uma espécie de pequena base aérea, destinada a instrução prática de técnicos da Força Aérea Brasileira.

Essa história começou quando a quase vizinha Hospedaria dos Imigrantes, aonde hoje é o Memorial do Imigrante, já estava praticamente sem função, porque já faziam alguns anos que as levas de imigrantes que tinham que chegar já haviam chegado.

Por conta dessa falta de novos hóspedes, o prédio foi cedido para a Força Aérea montar ali uma escola de especialistas, a ETAv – Escola Técnica de Aviação, para a formação do seu pessoal de apoio, como mecânicos, eletricistas, controladores de vôo, etc.

Acredito que a grande maioria das pessoas que visitam o atual Memorial do Imigrante, nem imaginam que um dia funcionou uma instalação da FAB naquele local.

O lugar de fato era excelente, quase que perfeito para as atividades da nova escola, o único senão era que ele não dispunha de nenhuma grande área a céu aberto para as solenidades próprias de uma instituição militar, como formaturas e comemorações de datas importantes, e foi aí que o hipódromo entrou na história, porque a solução que os militares encontraram foi a de passarem usar o seu quase vizinho Jóquei Clube para esses eventos.

Daí a conseguirem colocar lá no hipódromo aviões, para a instrução em terra dos seus alunos, foi um passo e assim, em pouco tempo, o Jóquei Clube passou a abrigar uma pequena, mas muito significativa, frota de aeronaves que a FAB.recebeu dos Aliados para a formação e aperfeiçoamento do seu pessoal de manutenção.

Aliás, quem gosta de aviões da segunda guerra mundial iria se deliciar se pudesse voltar no tempo e visitar aquele lugar, porque lá havia nada menos do que um Lockheed B-34, um Douglas B-18 Bolo,

dois North American B-25 Mitchell, um Douglas A-20C Havoc com camuflagem de deserto da RAF,

um Vultee A-35B Vengeance, um Republic P-47 Thunderbolt e dois Curtiss P-40E Kittyhawk, todos eles em condições de vôo.

Além desses clássicos que voavam, eles também tinham alguns aparelhos já sem condições de vôo que serviam apenas para o treinamento em solo dos alunos, muitos deles aves raras em termos de Brasil.

Entre os não voadores se destacava este Consolidated C-87 Liberator Express, que também aparece de fundo naquelas fotos da formatura dos alunos. O C-87 era a versão de transporte do antológico bombardeiro B-24 Liberator.

Apesar de ter chegado voando, ele já estava com algumas limitações operacionais e por isso foi usado somente para instrução no solo, motivo pelo qual ele recebeu a denominação de IS-C-87, esse IS era o indicativo de instrução no solo.

Ele foi o único exemplar da família dos Liberators que a FAB teve e recebeu a matrícula número 2054.

Ainda falando dos que não voavam, existiram alguns que nunca receberam a matrícula da Força Aérea Brasileira, como foi o caso de um Bell P-39D Airacobra, que ficava sobre cavaletes. Esse avião era uma verdadeira salada, porque tinha a pintura e as insígnias da Inglaterra e matrícula dos Estados Unidos, era o USAAF 41-6914.

O seu motor sobreviveu até os dias de hoje e atualmente está em exposição no Museu Aeroespacial do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro.

Além dele, nessa mesma condição de não voadores que não receberam a matrícula da FAB, destacavam-se um Curtiss 0-52 Owl com camuflagem da força aérea americana e um Martin 187 Baltmore com pintura da RAF.

Mas, como eu disse no começo, veio o tal do progresso, o Hipódromo da Mooca foi ao chão e, entre viadutos, grandes jardins, calçada da Radial Leste, sede da subprefeitura da Mooca e outras coisas, fica até difícil de saber onde ficava aquele hipódromo, onde boa parte da história de São Paulo aconteceu.

Que pena, deviam ter conservado aquele lugar, foi para o chão que nem a saudosa maloca do Adoniran Barbosa.

Acho que na época que o dono mandou derrubar, faltou lá no hipódromo a Dona Catarina com a sua vassoura na mão, para colocar pra correr os homens que vieram fazer a demolição.