Não me recordo a época do ano, mas o entardecer já exigia um agasalho. Naquela hora, a brincadeira escolhida já por terminar, passava pelas ruas do bairro, em marcha lenta, um caminhão da Companhia Antarctica Paulista, convidando a todos para a “sessão cinematográfica” naquela noite, na Rua dos Trilhos, na praça em frente ao IAPI.
Com efeito, por volta das 20:00 hs., o caminhão avançava até o local previamente marcado e divulgado, instalando-se ali, montando a tela branca sobre a carroceria e, metros trás, um cavalete alto, sustentando a “máquina de filme” (projetor). A molecada sentava-se no chão e os adultos em cadeiras ou bancos, colocados nas calçadas.
Sem que ninguém sugerisse, pedisse ou ordenasse, fazia-se um silêncio notável que hoje, conhecendo a palavra e o seu significado, eu diria que era constrangedor para os operadores, enquanto a projeção não começasse.
Depois de alguns “reclames” (propaganda comercial) assistíamos desenhos animados como aquele do “neguinho que ficava branco” assustado com o fantasma (ainda existe esse desenho), “Opalonguecassidi” (Hopalong Cassidy), “Roiroje” (Roy Rogers), “Flechegordon” (Flash Gordon), mais “reclames” e o nosso encanto acabava tristemente, cerca de uma hora depois de iniciada a projeção, tristeza essa compensada pela esperada distribuição da então famosa guaraná Caçulinha (equivalente a um copo), réguas de madeira, borrachas e propaganda da Antarctica. Os homens da Companhia rapidamente desmontavam o dispositivo e retiravam-se buzinando, sob palmas e assovios da molecada, que só então começavam a recolher-se, andando e discutindo cenas do filme.
Voltávamos para casa já com a esperança de que outra sessão acontecesse muito em breve. Naquele tempo havia pobreza, mas não miserabilidade. Para muitos meninos que não tinham condições de comprar ingresso para os cines Moderno, Imperial, etc, aquela era a oportunidade de “assistir filme”.
Tão pouco e tão valioso…
Marco Aurélio Mobrige
