Não se pode dizer que a família Neves-Santoro é uma família tradicional da Mooca. Pelo menos no que se refere ao seu ramo de atividade. É que a maior parte de seus componentes se dedicou ao circo, criado pelos seus antepassados. E quem nos conta essa tudo a respeito é a professora de história Anna Maria Santoro, autora de um trabalho denominado “Desvendando os baús do Circo Arethuzza – o circo como um princípio educativo”, mooquense de berço e esposa de um herdeiro direto da família Neves-Santoro. Então, respeitável público com vocês o Circo Arethuzza!
Segundo Anna Maria o circo foi fundado em 1865 pelo comendador João Miguel de Farias,. “o comendador foi uma pessoa interessantíssima, foi capaz de na época, em 1870, desenvolver um elixir contra picada de cobra, além do seu número circense ser algo inédito : ele soltava as cobras no palco e pelo som que ele emitia, as cobras se levantavam, pegavam um chapéu e colocavam na cabeça dele”.
Depois da morte do Comendador o Circo foi comandado pelo seu genro Antonio das Neves e através dele, acabou fincando raízes na Mooca : “depois da década de 30, quando percebeu que estava muito difícil ficar viajando pelo interior de São Paulo e pelo Brasil, o Antonio adquiriu uma série de casas na Rua Hipias, na Mooca e toda a família circense passou a morar lá, apresentando-se pelos bairros de São Paulo”.
Na Mooca o circo instava-se geralmente no “Campo dos Bois”. Dificilmente algum morador da Mooca daquela época deixou de freqüentar, pelo menos uma vez, o Arethuza. E uma das que mais fanáticas era a nossa entrevistada. Foi quando Anna Maria conheceu o artista Antonio Santoro Junior. “E eu nunca iria imaginar que um dia viria a me casar com ele”
E foi depois desse assentamento que deu-se origem à união das famílias Neves e Santoro, além do nome do circo tornar-se “Arethuzza”, uma vez que já havia chamado Luso-Brasileiro e Colombo. O porque da mudança? A Anna Maria nos explica : “ Foi uma homenagem de Antonio das Neves à sua filha Arethuzza, a primeira aramista do Brasil”.
Já a união das famílias ocorreu de forma bem simples, a viúva Santoro precisava trabalhar e foi pedir asilo no circo, já que ela sabia costurar e poderia ser útil no mesmo, então as crianças cresceram todas juntas e para casar-se foi um pulo. “Casaram-se três irmãos e uma irmã da Família Neves com três irmãs e um irmão da Família Santoro. O meu marido é filho de Antonio Santoro e Alzira das Neves”, disse Anna Maria.
Mas quem pensa que a vida no circo era só ensaios e apresentações está muito enganado. As crianças, por exemplo, tinham um professor particular, o padrinho Barbosa, que lhes ensinava todas as matérias, tudo isso porque elas não eram aceitas nas escolas por serem nômades, mas a aramista Arethuzza dava muita importância ao conhecimento e se preocupava com o futuro da sua família. Portanto o ensino era fundamental.
Inclusive isso é uma das poucas coisas que se têm em comum com os circos de hoje. O aprendizado é fundamental, mas o restante é muito diferente, como nos explica a Anna Maria: “Naquela época o circo exercia o papel que o teatro exerce hoje. Todos os clássicos da literatura eram exibidos no circo. Além de cantores como Vicente Celestino, Chico Alves, Tonico e Tinoco, além de Eduardo das Neves, o primeiro cantor negro a gravar um disco no Brasil, e artistas em geral, como os palhaços que eram peças fundamentais. E na família Santoro-Neves tinha um famosíssimo, o palhaço Tomé”.
Com todos esses atrativos vocês devem estar se perguntando, e a banda? A banda era peça fundamental mesmo com os avanços da tecnologia. Claro que o seu papel foi diminuindo, mas sempre participava de um número circense e das apresentações do Hino Nacional que era tocado sempre nas primeiras sessões, em sessões especiais e quando chegavam numa cidade nova.
E por falar em cidade nova há um história bem interessante a respeito disso. Segundo a Anna Maria o que nós chamamos de concorrência o povo circense chamava de “competência”, isso porque havia o hábito em que quando duas famílias de nomes importantes chegavam na mesma cidade, eles faziam um desafio no qual os dois circos se apresentavam e o que trouxesse maior público ficava no local. “Era uma concorrência sadia, e o maior exemplo disso foi o incêndio do circo Arethuzza em Campinas (1934), além da ajuda de toda a família Neves-Santoro, o impressionante foi a total colaboração das outras famílias circenses, e em menos de um mês o Arethuzza já estava funcionando. Quer exemplo melhor que esse?”
Não, Anna, realmente não é necessário. Deu para sentir o quanto o povo circense é unido, e principalmente a importância da família nesse meio, mesmo porque várias gerações fizeram do circo Arethuzza um dos melhores do Brasil, inclusive Antônio Santoro Júnior, marido da Anna Maria e bisneto do fundador, que chegou a trabalhar no circo até a década de 60 quando estava com 20 anos e só parou porque percebeu que o circo não ia agüentar mais por muito tempo, já que as atividades foram encerradas em 1964, e o declínio se deu com a chegada da televisão na década de 50. “Os circos que continuaram eram os que faziam espetáculos como eram feitos na televisão e o Arethuzza não quis, preferiu fechar as portas para manter o que era tradicional ”, disse Anna Maria.
E o que “era tradicional” ainda foi exibido na década de 80, através das releituras apresentadas pelo Antonio Santoro Júnior no Teatro Arthur Azevedo juntamente com seus alunos da faculdade de Belas Artes, onde interpretavam o “Drama da Paixão”, tradicional no circo. Foram quase 10 anos de apresentação.
Vale ressaltar a importância dessa entrevista para não deixar a história dessas famílias e do circo Arethuzza morrerem, já que o circo daquela época é uma raridade, “minha vontade era poder editar esse material porque na minha opinião daqui duas gerações ninguém mais saberá o que foi o circo. Fizemos uma exposição na Pinacoteca do Estado em março de 1994, mas ainda há muita coisa a ser vista e não queremos que isso permaneça somente dentro das nossas famílias.”
Nem nós, Anna Maria.
Entrevista concedida em março/2003 para Roberta Cury