Numa região que outrora era considerada como pertencente à Mooca, se destacava a Rua Dona Anna Nery, uma importante ligação entre os bairros da Mooca e do Cambucí, e foi nessa rua onde morei até meu casamento. Nessa rua era comum as vilas, pois os terrenos lá existentes eram grandes atendendo as necessidades de seus primeiros moradores. No início de sua ocupação seus moradores precisavam de terrenos onde poderiam com suas ocupações, suprir a cidade dos bens de primeira necessidade como verduras, frutas, leite, enfim alimentos, e nesse sentido os loteamentos se faziam, em grandes espaços para atender essa necessidade.

Ora com o desenvolvimento esses terrenos teriam outro destino, muitos deles se tornaram vilas outros cortiços e alguns deles em fábricas ou pequenas oficinas mecânicas, tanto que da Rua da Mooca até a avenida do Estado( aproximadamente 500 metros), haviam mais que 10 vilas e mais que uns 20 cortiços, destacando-se entre elas a “Vila da merda”. Esse não era seu nome, na realidade era Vila Ferreira, onde moravam mais de 40 famílias, sendo quase na totalidade espanhóis ou descendentes de espanhóis. Essa vila era bem defronte à rua Dom Bosco, mais especificamente no número 157 da rua Dona Anna Nery, sendo que até esse número havia mais três vilas.

Várias são as teses desse nome, todavia é uma pilhéria aos espanhóis que nela moravam.

Lembro-me de quando criançaficava indignado ao ouvir essa expressão, pois nessa vila moravam vários amigos meus de infância, e suas moradias embora pobres eram visivelmente cuidadas e limpas. Cresci e fui entendendo o motivo de tão repugnante apelido, como os espanhóis que lá moravam eram oriundos da Andaluzia (região ao sul da Espanha) eram cotidianas as frases:

–         “Me cago en nel niño”, quando se queixavam de seus filhos.

–         -“Me cago em la niña” , ralhando com suas filhas.

–         -“Me cago en Diós”, se algo lhes acontecesse de errado.

Desse modo as pessoas que por lá passavam para debochar dessa etnia, falavam que os espanhóis moravam naquilo que mais sabiam fazer, ou seja “na merda”.

Na realidade isso denotava uma questão bairrista, já que o bairro da Mooca era habitado depois da maioria de descendência portuguesa, por descendentes dos italianos. Ora essa rivalidade vinha desde o império romano, tanto que em nosso país essa rivalidade se verificava em quase todas as manifestações e atividades sociais, no futebol, por exemplo, os espanhóis e seus descendentes torciam pelo Corinthians, e os italianos e seus descendentes pelo Palmeiras, em suas atividades profissionais os espanhóis se dedicavam prioritariamente ao comércio de matérias primas, se tivessem pouco capital com ferros-velhos e os mais abastados com distribuidoras de metais, e os italianos como melhores artífices se dedicavam às industrias e oficinas, na arte os espanhóis preferiam atividades mais lúdicas já os italianos preferiam a música e assim por diante.

Outra tese para esse apelido era que naquele tempo o lixo era recolhido em latas de 20 litros, e como os lixeiros faziam a coleta no período vespertino, na entrada dessa vila ficavam todas as latas dos moradores, esperando que o caminhão passasse recolhendo seus detritos caseiros. Ora naquele tempo não havia os recursos atuais (sacos de lixo plásticos), e por conseqüência o odor que exalava, de material orgânico em decomposição, era bastante fétido, confundindo-se com o cheiro característico de feses.

Não sei o certo qual a teoria mais acertada, mas tenho a comvicção de que dessa vila saíram vários comerciantes, advogados, enfermeiras, professoras, engenheiros, médicos, e como não poderia deixar de ser, alguns malandros.

Hoje essa vila já foi demolida, e em seu espaço há uma creche municipal, onde são atendidas algumas crianças da região. Parece-me que seu(o da vila)  destino é proporcionar às crianças um espaço onde mora a alegria, já que nesse espaço desde seus primórdios isso foi uma constante. Nela fazíamos nossas atividades lúdicas, jogávamos bola, brincávamos de esconde-esconde, as meninas pulavam corda, e às noites era lá onde dávamos nossos primeiros beijinhos infantis.

Lembro-me ainda com saudades dos natais e dos fins de anos, uma vez que nessas oportunidades seus moradores relembrando costumes de sua terra natal, saiam em cortejos pela rua tocando instrumentos barulhentos e cantando canções comemorativas à época, batiam em todas as casas onde tomavam uma copa( um aperitivo à base de menta ou algo parecido)  e o que mais me indignava era que os presentes às crianças eram distribuídos na véspera do dia     dos reis,e não na véspera de Natal como é o costume atual.

Pelo período do carnaval, os homens se fantasiavam com roupas de suas esposas e saiam pela rua cantando e dançando as músicas de sucesso da época, não importando a afinação e o ritmo, pois com aqueles instrumentos nem sempre isso era possível, mas o que lhes interessava era a alegria e a brincadeira do carnaval.

Se falei dessa vila e não dei destaque a nenhum de seus moradores é para não cometer injustiça, preferi dar meu testemunho de uma convivência alegre, solidária, honesta e com elevado espírito mooquense. Se perguntarmos a algum de seus antigos moradores onde viveram dias inesquecíveis, eles responderão:

Nos Estados Unidos da Mooca, mais especificamente na “VILA DA MERDA”

Por Valter Rodrigues.